Onde se fala de gatos e de homens
Manuel António
Pina
Os meus gatos dormem durante a maior
parte do dia (e, obviamente, durante a noite toda). Suspeito que os gatos têm
um segredo, que conhecem uma porta para um mundo coincidente e feliz, por onde
só se passa sonhando. Um mundo criado como Deus terá criado o nosso humano
mundo, à sua desmesurada imagem. Porque os que sonham são deuses criadores. Os
gatos sonham dormindo, os homens sonham fazendo perguntas e procurando
respostas.
Mas os meus gatos dormem e sonham
porque não têm fome. Teriam, se precisassem de procurar comida, tempo para
sonhar? Acontece talvez assim com os homens. Como se o espírito criador fosse,
afinal, prisioneiro do estômago. Talvez, então, a mesquinhez de propósitos da
nossa vida coletiva radique, como nos querem fazer crer, no défice, e talvez o
cumprimento das normas do pacto de estabilidade seja o único sonho que nos é
hoje permitido.
E, contudo, dir-se-ia (e isto é algo
que escapa aos economistas) que é o sonho, mais do que a balança de pagamentos,
que alimenta a vida, e que os povos, como os homens, precisam de mais do que de
números. Os próprios números têm (os economistas não o sabem porque a sua
ciência dos números é uma ciência de escravos) o poder desrazoável de, não
apenas repetir, mas sonhar o mundo.
Há anos que somos governados por
economistas e o resultado está à vista. Talvez seja chegada a altura de ser a
política (e o sonho) a dirigir a economia e não a economia a dirigir a
política. Jesus Cristo «não sabia nada de finanças, / nem consta que tivesse
biblioteca», e o seu sonho, no entanto, continua a mover o mundo.
JN, 09/11/2005
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