sexta-feira, 12 de março de 2010

Sobre a infância e o brincar: não somos nós, também, o que fomos?

Sobre a infância e o brincar: não somos nós, também, o que fomos?

Num tempo em que se vem problematizando cada vez mais a extensão das actividades escolares e em que esta discussão se alarga para além dos restritos meios académico e profissional, é de crucial importância reflectir simultaneamente sobre as causas do fenómeno e tentar compreender que discursos fundamentam este estado de coisas.
De uma forma simples e directa, a questão pode resumir-se à pergunta sobre as razões do excesso de trabalho escolar. A interrogação é tão mais pertinente quanto a lógica – ou a racionalidade - que subjaz a esse excesso migra da esfera dos tempos escolares para a esfera dos tempos não-escolares ou, para utilizar uma terminologia mais ortodoxa – mas questionada e questionável -, dos “tempos livres”.
Das recentes discussões académicas e públicas em torno da questão transparece a ideia de que “os trabalhos de casa servem sobretudo a instituição escolar”, e são organizados em função dos objectivos da escola, das suas lógicas e filosofias pedagógicas dominantes. Uma afirmação escutada, também, no âmbito dos debates, é a de que “é todo um sistema”. Aqui está, portanto, um ponto de partida para um ensaio de procura das “causas profundas” ou, de uma forma mais rigorosa, da sustentação ideológica do fenómeno.
Muitas das mudanças em curso dentro das instituições escolares são justificadas através de narrativas que evocam transformações externas de âmbito global e expressas em diferentes domínios (tecnológicos, económicos, sociais, culturais, etc.). Nesses discursos, que procuram legitimar determinadas leituras e representações da realidade, essas mudanças são assumidas como inevitáveis, como consequência fatal, e fora de discussão, das transformações estruturais, a nível global, ocorridas nos últimos trinta anos. Ora, é justamente a apropriação que estes discursos fazem da ideia do mundo em permanente mudança, e a interpretação de carácter teleológico, adjacente, dessas transformações (com a antevisão dos “inequívocos” benefícios para a instituição escolar) que fornece uma segunda pista para esboçar um quadro explicativo das “causas profundas”, dos fundamentos ideológicos que, de uma forma genérica, impregnam tanto as lógicas das transformações globais como as que têm vindo a penetrar a organização e a vida escolares.
Neste ponto, convirá sublinhar a importação de lógicas e discursos managerialistas, e de racionalidades do mundo da “ciência” económica, para a esfera da instituição escolar e para o mundo da educação – assim como para outros domínios de fornecimento de serviços públicos. A proposta de interpretação dos fundamentos ideológicos que sustentam a crescente dimensão do trabalho escolar (e a subsequente vampirização do tempo das crianças) que aqui se deixa pretende relevar os indícios da presença de certos conceitos característicos e estruturantes de um certo pensamento político-económico. Exemplos: a noção de produtividade e a noção de relação custo-benefício, de retorno obrigatório do esforço institucional e colectivo (e individual, também), que pressionam o alargamento do trabalho escolar, remetem para a noção contemporânea, muito pós-moderna, da performance, e, por outro lado, e a um nível ideológico mais preciso, para a ideia de eficiência, tão cara ao paradigma político-económico do neoliberalismo. Os conceitos e práticas propostas pelo managerialismo neo-liberal que estão aí presentes são, de resto, bem conhecidos pelas classes profissionais dos professores e educadores de infância, que têm vindo a ser submersos e algemados por crescente trabalho burocrático. Trata-se, como tem sido sublinhado, de uma submissão de todas as esferas da vida social às lógicas autoritárias e “inegociáveis” da economia.
Voltando à questão essencial das consequências da introdução de tais conceitos no mundo da educação e na esfera da gestão do tempo das crianças, a questão dos efeitos sobre as vivências das crianças: não estaremos, afinal, a assistir a um esmagamento da experiência da infância, à construção de dispositivos que a reduzem substantivamente?
A noção de actividade escolar é implicitamente questionável, designadamente quando se fala na necessidade de “respeitar o ritmo e o bem-estar das crianças na organização das suas actividades”. Tal significaria colocar em primeiro plano a condição de criança, a condição da infância, o respeito efectivo pela natureza da infância, que é, reconhecidamente, a de uma permanente disposição para a exploração, para a criatividade e para a invenção. Neste plano, o exercício de brincar colide frontalmente com a estratégia pedagógica de organizar sistematicamente as actividades lúdicas das crianças em função de objectivos pré-fixados, objectivos que respondem aos desígnios definidos no âmbito do que são os interesses específicos e institucionais da escola.
A partir desse contraste, a importância do brincar e de ser criança no tempo certo surge bem nítida. A qualidade da experiência de ser criança não é um esteio essencial da qualidade do adulto por vir? Não somos nós, também, o que fomos?

Humberto Lopes

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